quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O CADERNO

Eu limpava os moveis da sala, enquanto minha mãe conversava com nossa empregada: as duas sentadas à mesa, com o caderno misterioso entre elas.  Eu já perguntara sobre o caderno a Lia, mas recebera respostas evasivas, o que só serviu para aumentar-lhe o mistério.

Naquele dia, pelo tom cochichado da conversa, percebi que teríamos novidades.  Curiosíssima, tratei de agir de forma metódica e silenciosa, levantando cuidadosamente cada paninho de crochê branco que adornava os móveis escuros, tirando a poeira com capricho, enquanto deixava os ouvidos bem atentos.  Mas nada consegui apurar.

-Cilinha - chamou minha mãe.  Lá fui eu, coração acelerado sem saber o que estava por vir.  Mamãe iniciou uma conversa longa e atrapalhada enquanto o caderno mudava de posição em suas mãos.  - Nada não, concluiu - vai terminar seu serviço. 
Fui: a curiosidade, aguçada por aquela conversa, tornando-me mais lenta e silenciosa.
-    Cilinha! – chamou mamãe pela segunda vez.  Obedeci e deu-se uma conversa parecida com a outra, cheia de reticências e sem sentido, seguida de uma nova dispensa.  Mas, dessa vez, enquanto voltava para minha limpeza, ligando palavras soltas, uma luzinha se acendeu em minha mente.  Já sei! 
Veio o terceiro chamado e a mãe, cada vez mais atrapalhada, foi interrompida por mim. 
-      Não se preocupe, mainha – disse, com ternura, aquela menina de 10 anos de idade, na longínqua década de 1960. -  Eu já sei o que a senhora quer me dizer : é sobre menstruação, não é?  Uma moça foi lá no colégio e explicou tudo, fazendo propaganda do modess.
O modess, que por muito tempo emprestou o nome ao absorvente íntimo, como acontece com a gilete e a xerox, por exemplo, chamava-se  “Absorvente higiênico Modess Pétala Macia” e uma de suas formas de divulgação era uma fotonovela de uma página onde a mocinha dizia estar “naqueles dias”.  Eu, que adorava fotonovelas, lia a historinha sem saber o significado daquela expressão.

Mamãe sorriu, aliviada, e me abraçou.  O caderno, disse Lia, é onde a gente anota as datas e escreve pensamentos sobre "ser moça", por isso não podia te mostrar.   Fiquei feliz e temerosa.  Agora eu sabia oficialmente o que era menstruação, mas quando chegaria minha vez?  Desejei, secretamente, que demorasse muito, muito tempo.

6 comentários:

  1. Querida,

    que forma sensível e delicada de viver este momento que, principalmente na década de 60, era cercado de mistério.
    Eu era filha mais nova e aprendia as "coisas da vida" pescando aqui e ali os comentários feitos pela minha irmã e suas amigas.
    Em relação aos absorventes, por diversas vezes fui ao mercado comprá-los para minha irmã sem a menor idéia da sua utilidade. Aos onze anos, enfim, passei a conviver com esta situação, chamada no meu tempo de "ficar moça". O fato foi alardeado publicamente (parentes, vizinhos, amigas de minha mãe) o que me irritou profundamente e me fez jamais utilizar uma tal caixa cor de rosa de matelassê toda enfeitada de fitas e flores, que ganhei de presente para guardar os tais absorventes.
    Histórias, histórias.

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  2. Adorei seu comentário. Como disse Inácio de Loyola: "a crônica está dentro de casa". Nossa infância foi recheada de histórias interessantes, histórias de outros tempos. Adoro contá-las. Bjs, Cecilia

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  3. Ceci, ainda me lembro do dia em que"fui moça". Quase morro de vergonha! Estava em um restaurante e comecei a sentir cólicas. Falei pra minha mãe que era uma "dor de barriga esquisita". Claro que era a primeira cólica, também! Confirmei isso logo, logo...

    Você soube encher de ternura um assunto que, para nós mulheres, muitas vezes vem cercado de mistério, desconfiança, até medo. e olhe que estamos no século XXI!

    Gosto do uso que você faz das palavras. Cada uma assume seu devido lugar no contexto.

    Beijos,

    Fátima

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  4. Muito grata,Fafá!
    Também gosto muito de ler o que vc escreve, pois as palavras fluem com graça e coerência.
    Bjs, Ceci

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  5. Olá Cecilia eram outros tempos. Morríamos de vergonha da menstruação, de tudo que se referia a sexo. Entre as meninas, falávamos em código sobre esse assunto. Bons tempos...

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  6. Oi, Nozomi, é ÓTIMO ter você de volta! Bjs

    Ana Cecília

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