segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O prazer de dizer não


Já se passaram mais de 20 anos, mas posso ver a cena, sempre que aciono os botões da memória: sob o sol fulgurante do meio-dia, em Recife, num ponto de ônibus, minha amiga Rosa me disse: vamos comigo à costureira, no Ibura? Para que fique clara a magnitude dessa proposta, tenho que relembrar meus parcos conhecimentos da geopolítica recifense: o bairro do Ibura, onde morava a costureira de Rosa, um dos mais populosos do Recife, apresenta o menor Índice de Desenvolvimento Humano da cidade e dista, pelo menos, 20 quilômetros do centro da capital o que, na época, significava tomar 2 ônibus, pelos quais se esperava em torno de 15 minutos, geralmente sob um “calor de rachar”.

Lembro-me que, naquele momento, meu ser inundou-se com o desejo de dizer NÃO, mas, respondendo a um quase condicionamento, pronunciei palavras de absoluta concordância. Uma decisão incômoda, que levei imediatamente à terapia, porque fazia parte de um histórico de anuências a programas que me traziam nenhuma vantagem a não ser a questionável fama de boazinha, facilmente confundível com a de uma pessoa tola e fácil de engabelar.

Também me lembro, com clareza, do exercício proposto pela minha terapeuta, quando contei a historinha do Ibura.: Renata propôs que ficássemos de pé e, sempre que ela dissesse SIM, eu diria NÃO.  Em que pese a aparente simplicidade do exercício e o metro e meio de altura da minha psicóloga, à medida que o exercício se desenrolava, crescia minha dificuldade em pronunciar o NÃO, a ponto de tornar-se quase dor. 

Mas o tempo passou e muitos anos, experiências, e horas de terapia depois, passei a experimentar, amadurecer e, aos poucos, descobrir o prazer do não. O marco da aquisição desse prazer, recordação das mais significativas, aconteceu assim: logo que saí da casa dos meus pais para a aventura de morar sozinha, um amigo, que estudava teatro no Rio, pediu-me para hospedar uma colega, que viria na semana pré-carnavalesca passar uns dias em Recife. Concordei, feliz em poder colaborar. A garota chegou no domingo cedo e, em nossa primeira saída, conheceu um belo olindense. Inadvertidamente, dei meu endereço para que ele fosse à minha casa, o que de fato aconteceu.  Segunda-feira à noite eu, cansada do trabalho, preferi ficar em casa a ir para o carnaval.  Respirei, aliviada, quando a hóspede, vamos chamá-la Teresa, saiu com nosso amigo e o moço conhecido na véspera. Mas, infelizmente, os dois voltaram em seguida e ficaram namorando na minha sala.

Você deve estar se perguntando porque, a essa altura do campeonato, eu ainda não dissera o tão decantado NÂO.  Difícil explicar, principalmente para alguém que carrega, inclusive, um longo histórico de calotes por conta da dificuldade do não; mas acho que, para me decidir, eu precisava da situação extrema que se seguiu. 

Acordo a uma da manhã, para beber água, e Tereza me segue, na volta para o quarto, onde se dá o seguinte diálogo:

Teresa - Você vai precisar entrar no quarto amanhã cedo?
Eu - Sim, por que?
Teresa - Porque “ele” vai dormir aqui  ...
Eu (Olhando bem nos olhos dela) – NÃO VAI NÃO!
 

Nada existe que se compare a esse prazer!  O NÃO, tranqüilo e consciente, o NÃO sem culpa, te dá uma noite tranquila e propicia um sono reparador.  O NÃO te presenteia com um dia seguinte pleno de paz, alegria e entusiasmo pela vida...

Aquele “day after” foi inesquecível para mim, marcado por uma incrível e deliciosa sensação de liberdade.  Contei e recontei o fato para diversos amigos e a sensação de leveza ficou comigo por muito tempo...  A PARTIR DAQUELE MOMENTO, eu não era mais uma menina boazinha e boba, que ia a costureiras longínquas, frequentava festas chatas e emprestava dinheiro pela falta de coragem para a negativa.  A partir dali, continuei, cada vez mais firme, a construção de uma mulher que consegue exercitar sempre mais, o direito de dizer não com delicadeza, cultivando a sabedoria e a segurança de saber que o amor e o respeito daqueles que realmente importam, virão junto com meu amor e respeito por mim.  Uma construção passo a passo, não sem alguns tropeços, em que vou aprendendo, pouco a pouco, a jamais dar prioridade à necessidade de agradar.

Acha que estou exagerando?  Então, diga NÃO e experimente você também esse prazer!      

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Remédio para depressão


Meu programa preferido, nas tardes de domingo, é deitar no sofá e assistir às séries na TV a cabo.  Uma das que mais gosto é “Desperate housewives” cujo enredo gira em torno da vida de quatro mulheres: Linette, Gabrielle, Brie e Susan, que residem em Wisteria Lane, uma graciosa rua sem saída de uma cidade norte-americana qualquer.
 O tema da série é a nossa “humanidade” ou seja, tudo que pode haver de mesquinho, desprezível e até criminoso, sob a aparência extremamente agradável das casas amplas com jardins floridos, habitadas por pessoas elegantes e bonitas,  que formam Wisteria Lane.  Mas essa humanidade também é feita de sentimentos nobres e boas intenções, que guiam ações nem sempre ortodoxas, mas que têm, às vezes, resultados positivos.
Foi o que aconteceu alguns episódios atrás, com Linette Scavo e seu marido Tom. A característica predominante no casal Scavo é sua fertilidade, reforçada pela forte atração física que Tom sente por sua mulher, apesar dos muitos anos de casamento e da quantidade expressiva de filhos que os dois já puseram no mundo.  O casal já tinha 4 filhos, dois dos quais gêmeos hiperativos, quando Linette, que já tem quase 50 anos, deu à luz uma menina.  Por essas e outras, Tom começou a apresentar sintomas de depressão. 

Após diversas tentativas de animá-lo, Linette o aconselha a procurar um médico, recomendado por não receitar remédios fortes.  Tom volta da consulta, animadíssimo, exibindo um pequeno frasco contendo maconha para uso medicinal.  Linette, preocupada, argumenta com o marido que não quer que os filhos o vejam “chapado” e preferiria que ele não usasse o remédio. Mas Tom insiste em seu desejo e sai, deixando o remédio na cozinha ao alcance de sua mulher.  
 Impulsionada por uma súbita inspiração, Linette despeja a maconha na pia, e enche o vidro com algo semelhante, que não é dado ao expectador, naquele momento, identificar. Dias depois, feliz pelo efeito do remédio, Tom o oferece ao amigo e vizinho Carlos que, sem querer, acaba por descobrir que Tom vem consumindo, apenas, simples e inofensivo orégano. 
 Indignado, Tom vai tomar satisfações com sua mulher que, simplesmente, começa a rir.  Após esse início meio desastroso, os dois acabam por se entender e, a certa altura, Linette diz ao marido: “desculpe-me por enganá-lo, mas o que estou achando engraçado é que você conseguiu se curar com simples tempero de pizza”.
  
 Mais tarde, o episódio me voltou à lembrança e me pus a pensar em quantas vezes nós agimos como Tom Scavo: buscamos fora a cura para nossos males, em remédios que causam muitas vezes, efeitos colaterais significativos, e esquecemo-nos de procurá-la dentro de nós, deixamos de lembrar que ela está ao nosso alcance, bastando apenas buscar o contato conosco mesmos e com aqueles que nos amam, para encontrá-la.

O personagem que serviu de estímulo a esta reflexão tem uma filha pequena, cujo nascimento causou muitos contratempos à família, por motivos que não vale destacar aqui.  Mas, ao final do diálogo esclarecedor com a esposa, ele diz: “vou para perto do berço transformar, eu mesmo, o cachimbo em poste de luz.”

Essa fala me trouxe à lembrança o tempo de transição entre a formatura e o primeiro emprego, quando eu e meus amigos íamos às festas sem dinheiro para beber. Passávamos a noite inteira dançando, hidratados só com água mineral e uma(1), garrafa de refrigerante. E como nos divertíamos!  Transformávamos, com nossa vitalidade e alegria de viver, “o cachimbo em poste de luz”.  Pra nós, bastava a música alegre, o salão amplo, o piso lisinho e o compartilhamento, para termos uma noite divertida. Não havia necessidade de aditivos.
Às vezes me pergunto: em que ponto do caminho perdemos essa capacidade de felicidade natural e fluida, que não precisava ser regada com nenhuma bebida ou droga da moda, bastando, apenas, a inebriante sensação de estarmos vivos?

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Cisne Negro - eu senti


O filme Cisne Negro não acaba quando você sai do cinema, nem quando você pega o carro e se afasta da sala onde o assistiu. A música fica tocando em seus ouvidos, mesmo que você ouça outras músicas; as imagens povoam seus sonhos, mesmo que você assista a uma comédia televisiva antes de dormir. Enquanto você está na sala de projeção, ele te envolve e encanta. As imagens são precisas, marcantes e, a medida que a trama se desenrola, te enchem de dúvidas e apreensão.

Você procura entender e julga que conseguiu, mas logo mergulha de novo na insegurança até ir assimilando aos poucos a loucura daquela artista que vai às últimas consequências para realizar sua arte com a tão ansiada perfeição... e é bem aí que começo a me identificar!
Uma obra de arte é algo que foi criado por alguém e que, quando se oferece ao público, está sujeita às mais variadas interpretações. Cada pessoa a “lerá” sob a própria ótica, de acordo com suas experiências, conhecimentos e vivências.
Cisne Negro me remeteu ao final dos anos 1980, quando interpretei Madame Clessi na peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. Eu era aluna do Curso de Formaçao do Ator, da UFPE, em Recife e, por falta de espaço nos teatros locais, nossa montagem foi concebida para um casarão, o que a tornava mais verossímil e envolvente, uma vez que a história de Alaíde, a protagonista, se passa num antigo casarão onde funcionara um bordel. dirigido pela cafetina “Madame Clessi”.
Na peça, Madame Clessi existe apenas na imaginação de Alaíde que, ao encontrar seu diário, fica fascinada pela história daquela mulher que tivera uma vida tão diferente da sua. Alaíde entra em coma após ser vítima de um atropelamento, e é em seu delírio que “Madame Clessi” passa a existir.

Para interpretar Clessi, mergulhei no universo rodrigueano, assistindo aos filmes baseados na obra de Nelson, lendo suas peças e sua biografia. Jovem e inexperiente na arte e na vida, ansiosa por dar o melhor de mim, me apaixonei pelo meu personagem e me misturei com ela a ponto de querer que durasse para sempre. Mergulhei de tal forma naquela existência paralela que, no dia seguinte à estréia, minha sensação foi de estranheza ao ver que o mundo não mudou. Tudo continuava ali, com sua forte característica de realidade, apesar de mim e de Clessi.

Cisne Negro é assim: intenso, verdadeiro, louco, real... contraste, harmonia, incoerência, beleza... impossível descrevê-lo pois assisti-lo, será, sem dúvida, uma experiência pessoal. Natalie Portman, interpretando Nina, atinge a perfeição. A certa altura, extasiada com sua força interpretativa, eu disse ao ouvido da minha amiga “o Oscar é dela”. O maior prêmio de Natalie, porém, não lhe será dado pela Academia de Cinema e ninguém lhe pode tirar, pois vem sendo construído há muito tempo, com cada pedacinho de vida, cada erro ou acerto em cada trabalho. Ele é construído passo a passo e não é dado apenas aos famosos. É a alegria selvagem, o êxtase, a satisfaçao plena de ter, enfim, conseguido dar o melhor de si.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Mimi e Nina

Em setembro de 2010, após muito tempo sonhando fiz, finalmente, minha primeira viagem à Europa.  Que maravilha estar naquelas cidades tão belas: Paris, Londres, Veneza, Florença, Roma... palácios, museus, igrejas, obras de arte, beleza de encher os olhos e a alma!

Dentre as tantas experiências vividas, escolhi uma para contar a vocês. Voilá!


Estar em Paris era o máximo mas, para mim, só teria graça se saísse daquele ônibus de turismo,  pusesse os pés nas calçadas da cidade e me comunicasse com as pessoas que lá moravam. Queria caminhar pelas ruas, pontes e praças parisienses, sentir cheiros e sabores, cruzar com seu povo, ver “franceses”. Pensava em chegar aos lugares por minha conta e acreditava ser possível, embora  meu francês se resumisse a je t’aime, ma cherie, mon ami, bonjour  e... Gerard Depardieu.

Naquela manhã meio fria, saímos do hotel após o café,de forma intrépida e corajosa, rumo ao Palácio de Versailles. Minhas companheiras de viagem são boas de mapa e acreditavam no meu poder de comunicação mas, secretamente, fiz uma pequena oração: “Deus, faça com que encontremos pessoas boas em nosso caminho.” Ele me atendeu.

Assim que entrei no metrô, avistei duas senhoras que pareciam ser gente boa e simples. Sentei-me diante delas e, usando mímica, expressões, sorrisos e umas poucas palavras, consegui perguntar em que estação deveríamos descer para tomar outra condução até Versailles. Elas sabiam mas, quando desandavam a falar rapidamente, eu não conseguia entender. Minhas amigas entraram na conversa e, juntas, compreendemos que deveríamos descer na estação 9-Pont de Sévres: “neuf neuf”, insistia a senhora mais gordinha, formando o número 9 com as mãos.

Mais tranquila após me apoderar da informação, comecei a “conversar” com as duas.  Perguntei-lhes os nomes.  Mimi e Nina, responderam.  Disse-lhes que me chamava Ana, dos meus nomes o mais fácil de entender; falei que sou brasileira e o
resto da comunicação se fez de sorrisos e olhares carinhosos por parte das duas.  Quando a estação Pont de Sévres se aproximou, Mimi apertou levemente meu braço e disse ,muito devagar, para que eu entendesse: “Ana, au revoir”.

Levantamo-nos para descer mas a porta não abriu.  Não abre? perguntei, apavorada. Mimi levantou-se afobadamente e com gestos largos indicou que precisávamos abrir a porta com as mãos. Um jovem que estava próximo abriu a porta e minhas companheiras pularam. Eu, mais pesada e por isso mesmo menos ágil, fiquei, mas a porta foi novamente aberta e, finalmente, consegui descer do metrô.

Ufa! Que medo de me perder das amigas e ficar sozinha naquela cidade estranha. Acostumada com os metrôs brasileiros: Recife, São Paulo, Rio e Brasília, com suas portas que abrem sozinhas, jamais imaginaria encontrar, na cidade luz, metrô com portas manuais.


Foi uma grande aventura mas, inesquecível mesmo, foi conhecer aquelas duas encantadoras senhoras.  Devem ter por volta dos 65 anos.  Vestidas com simplicidade, pareciam estar voltando para casa após algumas compras.  Jamais esquecerei a forma carinhosa como me trataram, interessando-se tanto por nosso destino, esmerando-se para nos dar uma informação compreensível, desmanchando para sempre o preconceito que eu trazia de que os franceses são grosseiros e não se preocupam em entender e ajudar os outros.   

Lembrarei para sempre o olhar amoroso das duas, talvez nos achando meio maluquinhas por estarmos sozinhas em Paris tentando chegar em algum lugar sem falar a língua, mas com muita tolerância e vontade de ajudar.

Esse texto é uma forma de homenagear Mimi e Nina, dizendo a todos que o lerem que os franceses são pessoas doces e disponíveis.  

Mimi e Nina, foi um prazer muito grande conhecê-las.  Au revoir, queridas!